Sub-produto do exercicio

Quando era puto e frequentava cafés, às vezes encontrava um gajo que me deixava sempre fascinado. Contava histórias sobre um olho, e sobre nós sentados à fogueira. Era bom quando o encontrava.

Anos mais tarde dei com ele novamente. Estava inchado e parecia anestesiado. Falava e mexia-se muito, muito devagar. Depois disso passei por ele mais algumas vezes. Às vezes estava só ali, de pé encostado a uma esquina.

Disse-me que estava a ser medicado.
Aquilo custou-me imenso, amaldiçoei as drogas que castram e transformam olhos em vegetais.
Depois um dia, ele diz-me que estava muito melhor assim. Sentia serenidade, sem infernos que o perseguissem.
E eu aprendi que é impossível aprender a sentir pelos outros.

Ps. Ainda há cafés para frequentar?

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Exercicio

Olhando para trás, qual foi a coisa que te orgulhas mesmo de ter feito?

Pensar no passado para quem já tem passado é bom. Põe-me sorrisos e nostalgia.

Mas é o escolher só um, que pode ser interessante. Distinguir o essencial do acessório.
E pensar nisso daqui para a frente.

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Estive a remexer em mails

Ensinamentos que adquiri ao longo dos tempos:
– Nunca batas num homem com óculos. Usa as mãos, é mais eficiente.
– Bebe moderadamente, mesmo que em grandes quantidades.
– Não funcionou da primeira vez? Desiste de saltar de pára-quedas.
– Não te aches horrível pela manhã. Acorda ao meio-dia.
– Nunca se deve bater num homem caído, a não ser que tenhas a certeza que ele já não se levanta.
– Evita uma vida sedentária: bebe!
– Evita acidentes: faz de propósito!

Dúvidas que me atormentam:
– Adão e Eva tinham umbigos?
– Porque é que as ameixas negras são vermelhas quando estão verdes?
– O mundo é redondo e chamam-lhe planeta. Se fosse plano chamar-lhe-iam redondeta?

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porque é que o Barry White é preto?

Tenho tudo organizado para me poder atormentar com o que não é organizável.

Liberdade é não ter medo. Liberdade é não pensar.

Liberdade é estar só.

O Sartre dizia que o inferno são os outros. Eu digo que a prisão são os outros.

E posso dizer isto porque já não espero nada. Sou livre.

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vai

vai para onde o metro não engole contabilistas como relógios enferrujados
e as criadinhas não precisam de luz a jorrar da cabeça para colher flores

vai e senta-te ao sol
repousa os dedos inseguros que tapam os olhos ocos de luz de criadinhas e contabilistas
para onde te leva essa luz que não cessa de nascer
para os metros que morrem e nunca voltam
permanecem solenemente nas vértebras que seguram dedos inquietos
de que te serve morrer nascer jorrar luz, tomar criadinhas, engolir contabilistas?
é certo que seria delicioso morder com luxúria a nudez de quem se perde no metro numa noite escura
inundar de café e música os lírios cortados da criadinha
é certo que seria delicioso abraçar o ir e vir o nascer e o morrer
afundar-me no escuro metro com uma criadinha a jorrar lírios cortados de café e música
trocar os dedos por línguas sedentas de bocas

Sou de poucas letras. Quando escrevo duas linhas já faço uma festa. Houve um único dia, já lá vão dez anos, em que sentei ao computador e escrevi uma página de alto a baixo, sem parar nem hesitar.

Lembro-me perfeitamente como se fosse ontem. Parecia maluco a matraquear nas teclas. Guardei aquilo tal e qual como me saiu, sem alterar uma vírgula.

Hoje calhou ir desenterrar coisas passadas, e redescobri este pedaço. Soube-me bem relê-lo. E quanto mais não seja por causa disso, vale a pena guardar a tinta no bolso.

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