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vai

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vai para onde o metro não engole contabilistas como relógios enferrujados
e as criadinhas não precisam de luz a jorrar da cabeça para colher flores

vai e senta-te ao sol
repousa os dedos inseguros que tapam os olhos ocos de luz de criadinhas e contabilistas
para onde te leva essa luz que não cessa de nascer
para os metros que morrem e nunca voltam
permanecem solenemente nas vértebras que seguram dedos inquietos
de que te serve morrer nascer jorrar luz, tomar criadinhas, engolir contabilistas?
é certo que seria delicioso morder com luxúria a nudez de quem se perde no metro numa noite escura
inundar de café e música os lírios cortados da criadinha
é certo que seria delicioso abraçar o ir e vir o nascer e o morrer
afundar-me no escuro metro com uma criadinha a jorrar lírios cortados de café e música
trocar os dedos por línguas sedentas de bocas

Sou de poucas letras. Quando escrevo duas linhas já faço uma festa. Houve um único dia, já lá vão dez anos, em que sentei ao computador e escrevi uma página de alto a baixo, sem parar nem hesitar.

Lembro-me perfeitamente como se fosse ontem. Parecia maluco a matraquear nas teclas. Guardei aquilo tal e qual como me saiu, sem alterar uma vírgula.

Hoje calhou ir desenterrar coisas passadas, e redescobri este pedaço. Soube-me bem relê-lo. E quanto mais não seja por causa disso, vale a pena guardar a tinta no bolso.

6 comments

  1. Abençoados dias. O de há dez anos, em que escreveste a página de alto a baixo, e o de hoje, em que desenterraste as palavras e as mostraste ao mundo.
    Texto com alma dentro, como faz tanta falta.
    Falas bastante em contabilistas… Porquê?
    E, sabes, tenho pena de não ter guardado a minha tinta no bolso.
    Também gosto da foto.

  2. Obrigado Isabel. Sabes que o desenterrei por causa da história do nome do nascer na praia. Deu-me também para voltar aos meus primórdios.
    Num desses comentários falavas do valor da interacção. Lá está. E neste caso a ‘culpa’ deste post é tua 🙂

    Os contabilistas? Mais uma vez tenho que perguntar ao Freud. Se ele não souber, eu também não.

    Há quem ache que se deve deixar as coisas ir. Eu sou quase coleccionista, até demais.

  3. Talvez seja a primeira vez em que gosto de ser e de me sentir culpada. A sério!
    Sim falei na interacção… Qualquer coisa associada ao entendimento de que nos fazemos e conhecemos na interacção que estabelecemos; de que, no limite, não existimos sem os outros.
    Na verdade, tenho pena de não ter guardado os meus primeiros escritos enquanto gente feita. Ainda há dias o confessava a uma amiga.

  4. E da interacção saem mais e melhores coisas do que quando fazemos por nós próprios.

    Em tempos trabalhei com uma pessoa que tinha um cargo de responsabilidade, e que eu achava, digamos, um bocado ‘simplório’.

    Por duas ou três vezes fiz visitas a empresas com ele. E eu achava que ele fazia perguntas em parte tolas, em parte de resposta muito óbvia. Eu na minha presunção de sabichão só queria fazer ‘boas’ perguntas.

    O que acontecia sempre, é que era na sequência das perguntas ‘tolas’ dele que ficava a saber coisas interessantes. Porque ele ia perguntando, e as pessoas iam falando sobre isto e sobre aquilo e assim nos íamos apercebendo das coisas.

    Acabei por perceber que o que ele fazia não era perguntar, era estimular a conversa, as trocas, e que na verdade o tolo era eu.

  5. Guardo, muitas vezes, a tinta nos bolsos, por pensar que não é tinta que se possa mostrar,que serve apenas para me deixar os dedos sujos.

  6. Não é sujidade é terra do caminho. Guarda tudo excepto o que não vale a pena guardar. (digo eu que guardo mais do que devia)

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