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Aceitação

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Se me quisessem cortar uma perna, é claro que resistiria até à última. Mas se vier a dor em quantidade e duração suficiente, peço para me cortarem a perna e a outra se for preciso. Qualquer coisa para parar a dor. A dor física ou emocional é um excelente instrumento de aceitação.
A dor serve para saber que algo está mal, mas também para aceitar o inaceitável.

17 comments

  1. Esta questão é muito complexa e tem nuances diferenciadoras entre a dor física e a dor emocional.
    Identifico-me com o que disseste e levaste-me a pensar nalguns aspectos que podem não encaixar aqui e virar o jogo ao contrário.

    Em relação ao físico, muitos são confrontados com problemas que, sem sentir qualquer dor, têm de ser submetidos a tratamentos muito invasivos que podem passar por retirar pedaços do corpo. Tenho dúvidas se para a maioria dessas pessoas aceitaria melhor se sentissem dor.
    Hoje digo felizmente para mim, porque me permite analisar melhor certas coisas, durante os sete meses que fiz tratamento numa clinica de fisioterapia e reabilitação, cruzei-me com muitas pessoas com as mais diversas patologias e sabíamos uns dos outros. Não ser ‘só’ ossos, músculos, braços e pernas partidos, como por vezes se supõe encontrar nestes sítios, faz muita diferença. A mim fez.
    De doentes do foro oncológico que tiraram pedaços do corpo ou dos que sofriam de patologias degenerativas, ouvi bastante ‘pelo menos não sinto dores; ao menos nunca tive dores’.
    Percebi, também, ali e em clinicas de diagnóstico, que a capacidade de aceitação é extraordinária, superando o que alguma vez imagináramos.
    Agora no binómio dor / insensibilidade e ainda no que respeita ao corpo.
    O que se sente quando se passa de um extremo ao outro é avassalador. Há três anos, num espaço de seis semanas. Antes da artroscopia sentia alguma dor, mais desconforto; o que importa é que me sentia. Quando retiraram os ferros e fizeram o teste clássico da água a correr, não sentia nada nem se sabia se voltaria a sentir. Tive de fazer muito trabalho. De cabeça, também, quero dizer.
    Essas questões da aceitação deixaram de ser tão lineares.

    A dor emocional pode não ajudar na aceitação. Há quem fique azedo, revoltado, cometa crimes, fique mais intolerante, encete modos de vida que até aí rejeitava.
    Por exemplo, sabe-se que as mulheres vítimas de violência sexual e com idades menos jovens (acima dos 35 anos) têm uma propensão expressiva para se tornarem prostitutas e algumas concretizam-no, quando até aí a vida que levavam não incluía esses comportamentos. Há diversas variáveis que contribuem para tal tendência. Agora referenciei apenas por causa da viragem inerente à aceitação.

    1. A dor mesmo nāo tem nuances.
      Queres maior revolta que a recusa e corte consigo próprio?

      1. Luís, quis dizer que neste contexto de aceitação, há especificidades que fazem alguma, ou bastante, diferença se a dor for física ou emocional, até porque esta última carrega mais estigma.
        Também de fora, é mais fácil compreenderem quando alguém tem problemas físicos e faz esforço de melhoria e aceitação. E isto é tão bem percepcionado quando houve mazelas físicas expressivas, entretanto curadas, e restam as outras. Mas só restam para quem as sente. Para os outros não existem.
        A dor emocional é vista muitas vezes como madurezas. Pertence aos fracos e aos que não têm nada para fazer.

        E estou aqui a pensar: a dor física não existe só por si, é também emocional. A dor emocional pode não ter repercussões ao nível físico.

        Com a pergunta não sei se quiseste dizer a não aceitação de si próprio?
        Se for isto, anda-se em constante conflito. Quando a inquietação ocupa demasiado espaço e come bocados por dentro.

        1. Com esta frase, Isabel, vieste ter comigo. É esta a dor calada.
          «Mas só restam para quem as sente. Para os outros não existem.
          A dor emocional é vista muitas vezes como madurezas. Pertence aos fracos e aos que não têm nada para fazer. »

  2. …e há aqueles que não falam, ou que parece terem aceite e estão em revolta interior.
    Há aqueles que não se aceitam nunca, falando de doenças oncológicas ou degenerativas. Aceitam o facto de estarem doentes, mas não aceitam olhar o espelho e verem-se assim, como estão.

    Agora já a escrever em algo marginalmente mais humano, acho que estamos a falar de coisas diferentes. Não falo em aceitar a dor, a doença, o mal, seja o que for. Falo em aceitar o quer que seja que acabe com essa dor, doença e mal.
    A maior parte de nós tem medo da morte, mas existe um limite de dor em que até a morte é aceitável.
    Talvez a palavra que escolhi não seja a melhor.

    Ia explicar o porquê do post, mas valores mais monetários me chamaram…

    1. No telescópio não dá para elaborar mas a fase final dessas coisas depois da recusa é precisamente a aceitação.

  3. As palavras da Inconfessável levaram-me a apanhar outras coordenadas do tema e a pensar mais.
    (Não sei se estou a escrever no sítio certo, quero dizer no nível adequado. Às vezes tenho estas dúvidas.)

    Aceitar é diferente de aguentar.
    Ambos os verbos implicam ter de se viver com algo menos bom ou numa circunstância que à partida não foi escolhida, ou então foi tida como escolha num contexto de mal menor.
    Aguentar é imposição.
    Aceitar é construção. É pegar na adversidade e erguer algo de novo. Aceitar é emergir do caos. Às vezes até é nesta zona que se abrem as designadas janelas de oportunidade.
    Aceitar é revolução, para fazer a ponte com o conceito de desejo construtivista do filósofo Gilles Deleuze, que o demarca da definição de falta. “Desejo não é falta, é produção.”, e assim chicoteou a psicanálise.

    O processo de aceitação, quer se trate da dor física como da dor emocional, tem mais hipóteses de ser bem sucedido e é menos moroso quando o mal resultou de um acaso, um acidente, e não é consequência de actos intencionais.
    Por exemplo, se eu tiver um acidente e ficar com mazelas expressivas incluindo as que colidem com a imagem de mim (falo disto por causa do olhar no espelho que a Inconfessável referiu), aceitarei melhor do que se iguais estragos forem provocados por uma pessoa que decidiu espancar-me. Eu sou a mesma, o espelho é o mesmo, a imagem é a mesma. Mas eu processo a informação de modo diferente porque os universos de uma e outra causa estão nos antípodas.

    A aceitação precisa de freios.
    A aceitação deixada ao deus dará facilmente resvala para o conformismo.
    E isto vale para a dor física como para a dor emocional.
    Por exemplo, se durante um processo de recuperação nos disserem que não é garantido que se consiga progredir mais, se dermos muita confiança à aceitação não persistimos, não lutamos, não insistimos.
    Aceitação não é acomodação. Mas esta, a acomodação, anda sempre lá a farejar e muitas vezes vence. Porque é difícil contrariar a tendência para termos pena de nós e para darmos de comer às angústias.

    A aceitação de problemas mais complexos não se faz a sós. Às vezes nem dos outros.
    A qualidade do apoio, especializado ou outro, é fundamental para o sucesso e consolidação do trabalho.

    O poema “Eu sei, mas não devia”, da Marina Colasanti, de que hoje me lembrei muito enquanto pensava neste assunto, a certa altura diz:
    “A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
    E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
    E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz,
    aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.”
    E aqui, saindo-se da escala pessoal, percebe-se tão bem o perigo de certa aceitação. A que é feita de conformismo.

    1. Isto já não tem a ver com o meu post inicial (pelos menos do que me lembro)
      A aceitação é o que vem na sequência do aguentar, é o desistir. A Marina de que gosto diz o que é bonito de se dizer. Não se devia desistir, resistir sempre. E faz sentido?

      E se conseguir gostar MESMO daquilo que só aguentava? Não será o ideal? Em vez de lutar assimilo.

      Ah e tal isso não é sou ‘eu’ ou estou a aceitar algo que é mau por algum padrão universal.

      E o que é isso de ‘eu’? E o que é isso do bem e do mal, quem decide o que é um e outro?

  4. Estou muito mais perto do Luís do que da Isabel.
    Penso que sou uma inconformista por profissão :), por isso passo a vida a perguntar ‘porquê’. É nesse contexto que percebo tão bem as perguntas finais do Luís.
    Claro que Gostar mesmo do que só se aguenta é o ideal, desde que não seja a morte, esta nunca é o ideal, mas é raro acontecer (raro no sentido de não ser usual).

    Acho que só uma pessoa pode aceitar, seja o que for, e é a que está a passar pelo processo. Acho que ninguém ajuda ninguém na aceitação. Claro que estou a falar na minha experiência pessoal e com doentes. Percebo que a Isabel tenha outra opinião, como é evidente.
    E sim Luís, às vezes é preferível a morte e a aceitação é total, para quem sofre e para quem vê sofrer.
    O ‘acostumar’ da Marina Colassanti, é o passar a ser normal uma anormalidade, pelo menos foi o que entendi e só assim posso estar de acordo com ela.

  5. Sei que nos comentários anteriores fiz desvios ao tema inicial. Mas não me preocupei com isso.
    Uma das principais razões que me faz vir a este blogue é a possibilidade de encontrar a maior parte das vezes, como entendi ser esta, a exposição de um assunto como sendo um ponto de partida para discussão onde podem entrar novos dados.
    De qualquer modo peço-vos desculpa para o caso de ter ultrapassado as marcas.

    Estive a ler de cima abaixo e fiquei com a ideia que na generalidade temos o mesmo entendimento sobre a aceitação. No que creio haver maior diferença é na linguagem utilizada.

    Pelo último comentário da Inconfessável fiquei na dúvida se teria transmitido convenientemente o meu entendimento.
    Eu não defendo incondicionalmente a aceitação e não me identifico com formas de viver permeadas pelo conformismo.
    Atrás, a certa altura, disse que a aceitação precisa de freios e que não deve ser deixada à solta porque facilmente resvala para a acomodação.

    (Quando digo o “deve” tem que ver com o que eu quero para mim, não é ninguém que me impõe. Aliás, detesto que, sem perguntar, me digam “mas olha que era melhor para ti.”)

    Só entendo que a aceitação faz sentido quando há construção, brota algo de novo ou se revoluciona o existente, uma transformação que o próprio sente valer a pena. Quando este processo se quebra, preferível desistir.
    Desistir, deixar coisas para trás, também é dos fortes. Como insistir e persistir também é dos fracos.

    Tenho a sensação que o foco da abordagem foi bastante dirigido para as situações de doença, talvez pelo exemplo inicial que o Luís deu.
    Vou por aqui e faço a ligação com a morte.
    Eu não tenho medo de morrer. Não faço ideia se estou em minoria ou não. Mas tenho muito medo do sofrimento que antecede a morte nos casos de certas doenças. Por isso defendo que a prática da eutanásia deveria ser despenalizada. Já que não posso escolher não ter essas doenças se for o caso de me calharem, queria poder escolher ir ou continuar. Podem perguntar-me: “Então, agora mandas a aceitação à vida, és uma fraca, desistes de viver?” Sim, desisto ou penso haver forte possibilidade de desistir caso possa escolher.
    Não partilho do entendimento que o sofrimento dignifica as pessoas, princípio que é muito usado por religiões.

    Especifico o que quis dizer com ajudar na aceitação.
    Não quis dizer que essa ajuda vem de alguém que nos diz qual o caminho bom.
    Na sequência duma pergunta do Luís, digo que ninguém tem o direito de querer substituir-se ao poder de decisão do próprio, à pala do que diz ser o mau e o bom.
    A ajuda que referi é feita de mostrar caminhos (até estou a pensar também em contexto de consultório), em falar de experiências idênticas e no levar a questionar-nos. A ajuda tem de deixar espaço aberto para que o próprio decida.
    Inconfessável, achas que ninguém ajuda ninguém na aceitação? Aludes à tua experiência com doentes… Não duvido, claro.
    Pegando no exemplo inicial.
    Homem, trinta anos, casado, um filho de dois anos, quadro de uma empresa, vida muito activa, prática de desporto. Há seis meses, numa manhã a conduzir para o trabalho, despistou-se e foram-lhe amputadas as duas pernas.
    Para ti, Inconfessável, operaram o homem, sentaram-no numa cadeira de rodas e mandaram-no embora sem mais? E os seus, as pessoas dele, não fizeram nada? Como se nada se tivesse passado?
    Claro que não é assim, embora o apoio e qualidade do mesmo dependa de vários factores.
    Sem perder o fito que o tema é a aceitação, e que tudo começou com a dor física e a dor emocional, seria muito ingrata se ignorasse quem me ajudou e ajuda. Do grande suporte à meia dúzia de palavras que até vindas de longe podem fazer a diferença no aceitar do que é para aceitar.

    Luís, sobre essa pergunta se não será o ideal conseguir gostar mesmo do que até aí se aguentava, diria que talvez aí se esteja no pleno da aceitação.
    Mas há diferenças entre “Eu prefiro assim” e “Eu até nem me importo assim”.

  6. Olá Isabel.
    Em relação à morte e à eutanásia, estou completamente de acordo contigo.
    Na questão da ajuda, é o que faz querer escrever em poucas palavras.
    Repara, uma coisa é a recuperação física outra é a recuperação emocional. Estou mais interessada na emocional.
    Na recuperação emocional, só se ajuda quem quer essa ajuda, ou melhor, quem tem predisposição emocional para aceitar a ajuda. Como a atitude tem de vir, forçosamente, de quem está mal, acho que não se ajuda ninguém. Os próprios é que se ajudam a si mesmos.
    É a minha maneira de ver, Isabel. Claro que há sempre apoio, de quem quer que seja, mas pode, é muitas vezes, recusado por não ser o tempo certo, ou por a dor e, ou a revolta serem tão grandes. O tempo certo pode nunca chegar.

    1. Inconfessável, e mais uma vez estamos de acordo no essencial.
      Também estou mais interessada na ajuda emocional e, aliás, foi sempre nela que pensei em primeiro lugar. Até porque a dor física traz sempre a emocional e o inverso já não acontece sempre.
      Mesmo no caso do homem das pernas amputadas, pensei também no que há a fazer ou no que se quer fazer em termos de aceitação da dor emocional.

      Razões que têm que ver com a minha privacidade impõem que não exponha numa plataforma de acesso público, como é o caso desta, situações da vida em que o apoio conducente à aceitação foi fundamental. Quer em contexto de consultório como fora dele. ´
      Claro que é o próprio que decide se quer ser ajudado, como será sempre ele quem conduz o processo e decide em todas as fases.
      Só que a realidade tem uma trama danada que é capaz de nos pôr à frente problemas que resultam em tal tumulto que nos retira a capacidade de perceber como estamos e que oferta de apoio nos é permitido tentar.
      A ajuda não começará aí? Em mostrar caminhos?
      Continuo a pensar em mostrar possibilidades e em ir-se acompanhando com a devida distância.

      Concordo também contigo quando falas que o apoio pode ser recusado por estar fora de timing ou por a dor ou a revolta serem tão grandes. Acrescentaria que o incorporar-se uma culpa sem razão, algo rebuscado em que se quer agarrar, pode levar à rejeição.

  7. Longe de mim dizer, ou se quer dar a entender, que não deve haver apoios ou ajudas, se tu queres usar o termo. Claro que sim.
    Estou como tu, também não quer contar muito mais.
    Penso que a nossa divergência não é apenas semântica, é talvez mais profunda. Eu não acredito em ajudas exteriores, nem se quer a de mostrar caminhos, por eles só se aceitarem se a pessoa quiser.
    Terás uma experiência diferente da minha, mas a minha pergunta (retórica) é: não achas que quiseste a ajuda, ou que já estavas preparada para a levar em consideração? houve algum tempo em que ta deram e não a aceitaste?
    Isto dito, gostava de esclarecer que apesar de tudo estou a padronizar comportamentos que não têm padrão, segundo o meu ponto de vista e que a minha posição não está fechada, nem limitada.

    1. Vou tentar responder-te.
      Lembrei-me disso, mas não disse pelas tais questões de reserva. Procurarei responder-te num registo que considero adequado face às circunstâncias.

      Houve uma primeira fase em que eu não tinha condições para tomar decisões por mim. Aqui a questão da vontade não se colocava. Não me obrigaram nem me largaram.
      Quando estava preparada para a levar em consideração, aceitei, à medida que ocorreram processos de negociação. Quero dizer que não foi do tipo comer tudo o que me punham à frente. Até porque existiam várias ementas.
      Não houve nenhuma altura em que rejeitasse. Mas houve períodos de grandes quebras. Retomava porque queria.

      Há dores emocionais em que aceitas, no sentido de integrar o que se passou na vida, ou dás um tiro nos miolos, engoles veneno ou um frasco de comprimidos.

      Estou bem.

      1. Acho que já não consigo acompanhar metade do que aqui se passa 🙂

        Isabel, somos sobreviventes, o gene que sobrevive a tudo é o que prevalece. E lá está, aceitamos dores para sobreviver, a aceitamos compromissos para evitar as dores.

  8. Ainda bem que estás bem. Obrigada.
    Durante muito tempo rejeitei toda e qualquer ajuda e apoio.
    Pensei seriamente em atirar-me da janela, estava no 10º andar, dava jeito.
    Depois houve musica e livros, não os de auto ajuda, mas encontrava-a em, quase, qualquer frase. Precisava dela.
    Houve um tempo em que trabalhei em dois hospitais, ente eles o IPO. Achei que, a maior parte das vezes, a grande ajuda era dada pelos doentes aos doentes e só depois pelos profissionais, quando finalmente se aceitava essa ajuda. Houve casos, não tão poucos como se poderá pensar, em que nunca se conseguiu ajudar.

    1. Engraçado, cheguei à conclusão que uma palavra tão bonita, ‘ajuda’ agora me causa um bocado de repulsa. E isto por causa dos cabrões dos politicos, que chamam ajuda a abusar duma posição de superioridade e da fraqueza de outros.

      A ideia que tinha antes de ajuda é um pouco a que ‘inconfessas’ :): Apesar de implicar alguém que ajuda e quem é ajudado, sempre vi uma coisa entre iguais, entre irmãos.

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