A primeira peça que vi na vida chamava-se “O primeiro” no teatro de bolso do TAS.
De bolso não era apelido, era mesmo de bolso. Só nos deixavam entrar quando convencidos que ia haver mais gente sentada que em pé no palco. Que não era bem um palco.
Há coisas na vida que nunca esquecem.
A peça começa com esta frase: É aqui que começa a fila?
E a partir daí é uma tragi-comédia em que os actores usam todos os estratagemas para passar para a frente da fila.
Mesmo hoje nem eles nem eu sabemos para que era a fila.
Queriam ser primeiros e estar á frente dos outros na fila, mesmo não sabendo para quê.
E isto sou eu. Não sei para que sirvo, nem porque faço o que faço.
Sei que sirvo para coisas, que faço mais do que posso todos os dias numa luta incessante de fazer.
Mas é para me enganar. Porque se olhar seria e friamente para o que deixo, tudo é nada.
Amanhã há um Porto-Sporting. Quero ver. É de certa forma importante para mim.
Mas na segunda feira vou ser o mesmo, e ter o mesmo dia, quer tenha havido jogo ou não.
Mas então qual a importância daquilo? Nenhuma.
Como diria o grande filosofo Pedro Ribeiro, o futebol é o momento.
E a vida também. Sem ser o momento, o resto é treta.
Pensando melhor. Tudo o que disse para trás é mentira.
O que não é treta é o que nos fica na memória.
O que não é treta, é o velhinho teatro do bolso onde vi a minha primeira peça de teatro na companhia da minha irmã.
O que não é treta, e que vale a pena, é tudo aquilo que fazemos por gosto, e 10 ou 50 anos depois nos lembramos, e dão prazer.
Venham muitos desses momentos.
Há poucos dias, numa viagem de comboio, li um livrinho de Eugénio de Andrade (e gostei de reler aquele conjunto de poemas assim organizados em livro, apesar de já os conhecer no modo avulso), e destaquei para as minhas coisas o poema que vou deixar a seguir porque fiquei a pensar um bom pedaço nos dias com memória e sem ela.
Sem memória
Haverá para os dias sem memória
outro nome que não seja morte?
Morte das coisas limpas, leves:
manhã rente às colinas,
a luz do corpo levada aos lábios,
os primeiros lilases do jardim.
Haverá outro nome para o lugar
onde não há lembrança de ti?
Eugénio de Andrade
O outro nome da terra | Assírio & Alvim, 1998, pág.78
_________________________
A nossa memória é selectiva e por isso tem uma função protectora, já que faz sobressair o bom que nos aconteceu, e mesmo no mau faz procurar um lado positivo, por associação a outras memórias.
Também, a maior parte do que nos acontece na vida é bom, mesmo quem diz ou de quem dizemos ter uma vida desgraçada.
Quando fazemos as perguntas: qual foi o teu pior momento da vida? e o melhor?
Normalmente conseguimos destacar com facilidade o pior momento ou os piores; quanto aos melhores, costumamos hesitar mais ou levarmos mais tempo a responder.
Isto porque há mais melhores do que piores momentos que ficaram retidos na memória, mesmo quando temos bastante presente memórias muito más.
A memória também se trabalha, esta, a associada ao sentimento de bem/mal estar.
Não vale nada dizerem-nos “esquece isso” em relação a algo que nos atormenta. Não se esquece ou se lembra porque se quer, e também o caminho não seria fazermos por esquecer. O que é preciso é desenvolver mecanismos de aceitação que permitam avançar casas do jogo. Não se é pior ou melhor perante algo mau que nos aconteceu, é-se diferente, numas ocasiões a investir mais em certos campos do que noutros.
Acho que não consigo dizer quais os momentos maus, puxando pela memória, lá me lembrei. E alguns fizeram com que me acontecessem coisas melhores, de modo que na verdade foram bons 🙂
Momentos mesmo maus, são aqueles da ultima tira da Mafalda. Em que fico sentado no passeio, com uma sensação de vazio e de inutilidade. São momentos e vida perdida.