Que por decreto parlamentar se reduza tudo sem excepção ao seu milésimo. Para retomarmos aquilo que os antigos chamavam de ‘apreciar’.
Estou farto dos decretos para lamentar. Farto dos quinhentos canais de televisão, farto dos dois mil amigos do facebook, dos duzentos álbuns para sacar da net, farto das quinhentas revistas para ler no tablet, farto dos 43 mil oitocentos e vinte e oito posts, farto das noticias do mundo todo, farto das setenta e oito marcas de iogurte e cento e doze champôs, farto dos milhares de coisas novas com que me emprenham todos os dias.
Tanto de novo sabe-me cada vez mais a velho. Estou farto, porra! Passa-se por cada vez mais e cada vez se passa menos. É pôr um like apressado no que não se lê, no que não se ouve, no que não se vê. Deram-nos um controle remoto para fazer zapping de manhã à noite. E não dá para parar, estamos no meio do Tetris, a escolha é jogar ou levar com as peças na cabeça.
Se há várias coisas que não se mudam por decreto – parlamentar ou para lamentar – esta, a que diz respeito ao voltar a apreciar, é uma delas.
Só tens e consomes aquilo que quiseres e puderes. Não tens de comer tudo o que te põem à frente.
A voragem dos tempos é um óptimo desafio à nossa capacidade de selecção e de resiliência.
Não temos de fazer igual à maioria. Paga-se um preço, sim.
É o mesmo que dizer a um gajo no meio dum tsunami, só és arrastado se quiseres.
Não é nada disso.
Aqui tens a possibilidade de optar.
É claro que não é fácil porque os aliciantes são muitos e há dificuldade em lidar com alguma pedalada que se julga perder em relação a quem tem e conhece uma série de coisas.
Também não quis dizer que agora se deve ignorar tudo o que surge e que devemos encerrar-nos no mundo que conhecemos desde pequeninos.
Agora que dentro da avalanche de que falas, é possível fazer escolhas que nos permitem agarrar alguma tranquilidade nesse reduto que referiste, isso é.
Posso fingir que não vivo no mundo em que vivo, há quem não tenha televisão, não tenha Internet, nem computador, faça compras na mercearia da esquina. Ler em livros e ouvir em discos, falar com bocas.
Ou seja, parar de jogar. Mas lá está vai levar com as peças do jogo na cabeça. A menos que vá plantar morangos para Almeirim.
Sim, leva-se sempre com algumas peças em cima, mas é possível escolher não levar com todas. Foi isso que quis dizer.
Pegando nos exemplos que deste.
Pois, aqui está uma gaja que faz as compras na mercearia a 500 metros do trabalho e que raramente entra num hipermercado. (Sei que não é normal… até os donos estranham.)
Tenho televisão, mas consumo pouca. Nalguns dias nem a ligo.
Tenho computador e internet e dou-lhes o uso que preciso e me sinto bem.
Só leio livros de papel.
E tomara eu ter mais bocas com quem falar.
Eu não finjo. É o que tenho.
(Venho aqui acrescentar mais uma coisa ao que disse a seguir – mas que foi ontem -, o que parece não ter lógica… É que julgo que isto fica fora da ordem que eu pretendia por causa dos níveis.)
Mesmo assim, eu ainda vivo com muitas coisas, mas julgo conseguir defender-me relativamente bem do bombardeio. Já tenho uma certa apetência para isso e também a cultivo porque me acrescenta liberdade.
O exemplo da mercearia que é rigorosamente verdade. Talvez só tenha três marcas de champôs para escolher. Chega-me. Mas se eventualmente eu quiser um produto específico, digo aos donos e no dia seguinte tenho o que pedi. Se quiser até me vêm entregar. Se pago mais que nos hipermercados? Não. Porque eles vão abastecer-se em armazéns estabelecidos na região e que também fornecem os grandes espaços. Já comparei.
Os produtos frescos comprados directamente ao produtor até são mais baratos. E para além disto, tenho duas coisas importantíssimas: atendimento personalizado e ganho de tempo.
Há uma coisa que não tenho e já começa a ser muito raro: net no telemóvel. Ando tentada, sim. Como não preciso por motivos profissionais, tem sido uma forma de estar menos dependente.
Mas aí sei que vou ceder.
No papel, quer para ler os livros como para escrever, duvido que mude. Preciso do cheiro e do toque, e da tinta a deslizar.
Também falaste dos posts… Não sei se já se reparou que raramente faço mais do que uma publicação diária, muito embora às vezes tenha matéria e esteja tentada. Contrario. Faz-me sentir mais liberta.
No fundo, o que quis dizer é que juntar “escolhas pequeninas”, pode dar para não perder a velocidade que interessa para prosseguir bem, e ao mesmo tempo sentirmo-nos mais libertos e disponíveis para aquilo que os antigos chamavam de “apreciar”.
É uma espécie de bombardeamento que pode, efectivamente, ser quase letal.
Bom dia, Luís 🙂
Boa Tarde, Maria! 🙂
Como te entendo. É, pelo menos a segunda vez, nestes últimos dias, que me dá vontade de gritar (a plenos pulmões), como a Mafalda, “Parem o mundo, que eu quero descer!”.
A tropa toda da Mafaldinha são meus herois 🙂
Também são meus heróis há muito tempo, Luís. 🙂