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O que será que será? Que dá dentro da gente, e que não devia

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O que será que me dá
Que me bole por dentro
O que será que me dá?
Que brota à flor da pele
O que será que me dá?
E que me sobe às faces
E me faz corar
E que me salta aos olhos
A me atraiçoar
E que me aperta o peito
E me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo
Me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá.
O que não tem remédio, nem nunca terá.
O que não tem receita.

O que será que será?
Que dá dentro da gente
E que não devia
Que desacata a gente que é revelia
Que é feito uma água ardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os ungüentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos toda alquimia
E nem todos os santos
O que será que será?
O que não tem descanso, nem nunca terá.
O que não tem cansaço, nem nunca terá.
O que não tem limite.

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá?!
Que me perturba o sono, será que me dá?!
Que todos os tremores vem agitar
Que todos os adores me vem atiçar
Que todos os suores me vem encharcar
Que todos os meus nervos estão a rogar
Que todos os meus órgãos estão a aclamar
Que uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá.
O que não tem governo, nem nunca terá.
O que não tem juízo


O que será, que será?
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
E gritam nos mercados que com certeza
Está na natureza

Será, que será?
O que não tem certeza nem nunca terá
O que não tem conserto nem nunca terá
O que não tem tamanho

O que será, que será?
Que vive nas ideias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos

Será, que será?
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido

O que será, que será?
Que todos os avisos não vão evitar
Por que todos os risos vão desafiar
Por que todos os sinos irão repicar
Por que todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo

O que será, que será?
Que todos os avisos não vão evitar
Por que todos os risos vão desafiar
Por que todos os sinos irão repicar
Por que todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo


O que será que será
E todos os meus nervos estão a rogar
E todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo

O que será que lhe dá
O que será meu nego, será que lhe dá
Que não lhe dá sossego, será que lhe dá
Será que o meu chamego quer me judiar
Será que isso são horas de ele vadiar
Será que passa fora o resto do dia
Será que foi-se embora em má
companhia
Será que essa criança quer me agoniar
Será que não se cansa de desafiar
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não
devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não
sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os ungüentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem juízo…

4 comments

  1. Há uns meses (em Abril, creio) participei na “Ler no Chiado” dedicada aos poetas brasileiros.
    Gostei bastante das conversas, das leituras, da música… E recordo-me bem que a sessão abriu com a “Valsinha” do Vinícius e encerrou com a “Construção” do Buarque.
    Desse dia fixei também uma das escolhas do Nuno Artur Silva e de lhe ter pedido para confirmar o nome do poema porque gostei muito. Trata-se de “Todo o sentimento”, de Buarque.

    Como já vi a “Construção” por aqui, talvez até mais que uma vez (é um poema bonito, muito forte, com uma mensagem imensa), vou deixar os outros dois que referi.

    Valsinha

    Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar.
    Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar.
    E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar.
    E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto
    Convidou-a pra rodar.

    E então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar.
    Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar.
    Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar.
    E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar.

    E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou.
    E foi tanta felicidade que toda cidade enfim se iluminou.
    E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouvia mais
    Que o mundo compreendeu
    E o dia amanheceu em paz.

    Vinicius de Moraes

    ____________________________

    Todo o sentimento

    Preciso não dormir
    Até se consumar
    O tempo da gente
    Preciso conduzir
    Um tempo de te amar
    Te amando devagar e urgentemente

    Pretendo descobrir
    No último momento
    Um tempo que refaz o que desfez
    Que recolhe todo sentimento
    E bota no corpo uma outra vez

    Prometo te querer
    Até o amor cair
    Doente, doente
    Prefiro, então, partir
    A tempo de poder
    A gente se desvencilhar da gente

    Depois de te perder
    Te encontro, com certeza
    Talvez num tempo da delicadeza
    Onde não diremos nada
    Nada aconteceu
    Apenas seguirei
    Como encantado ao lado teu

    Chico Buarque

  2. Ele faz coisas extraordinárias

    1. Há poucos dias acabei de ler o último livro do Miguel Sousa Tavares, “Cebola crua com sal e broa”. O título remete-nos para memórias, infância, percurso de vida,… e é isso, numa escrita muito boa, que já é habitual nele.
      A certa altura fala como a mãe e o Chico Buarque se conheceram, e como ele próprio se encontrou com o Chico. Referiu que uma coisa que lhe disse é que achava extraordinário uma pessoa escrever um romance passado em Budapeste sem nunca ter estado em Budapeste, como ele fez. Li esse romance do C. Buarque ( li vários dele (ou todos) e já disse por aí várias vezes que “Leite derramado” é o mais mais dele) e não fazia ideia que ele nunca tinha estado em Budapeste (pelo menos antes de escrever o livro) e realmente é extraordinário como conseguiu fazê-lo.

      Já que falei no último do MST, vou deixar um dos pedacinhos bonitos em que fala da mãe.
      Através da escrita, de um e do outro, percebe-se que o silêncio era/é algo comum. Acho que passados uns anos de ler “No teu deserto (MST), entendo melhor aquela escrita.

      – Miguel, cheguei à conclusão de que, como já não vou ter tempo de ler todos os livros que precisaria de ler, o melhor é voltar a ler sempre aqueles de que mais gostei.
      E era assim que ela organizava a sua biblioteca, como a ninguém mais vi: “Os de que gostei e os livros de que não gostei”. Guardo comigo, ganho em partilhas, os de que ela gostou.
      Quando a visitava e estava sozinha, ela, assim que me via, abria um sorriso que me deixava prostrado de felicidade e de remorsos por a visitar tão menos quanto devia e queria e podia. Mas ela nunca reclamava, sabia e compreendia. Ao princípio, falava muito, queixava-se do país, da política, disto e daquilo, do mau tempo, da falta de sol e de luz. Depois, se eu estava de regresso de alguma viagem, queria saber tudo. (…) Não queria ver fotografias algumas, que eu não levava, aliás: queria apenas que eu lhe contasse o que tinha visto, como se ela pudesse então ver também. Mais do que tudo, intrigavam-na as minhas frequentes viagens ao deserto:
      – Mas que há no deserto, Miguel?
      – Nada, mãe.
      – Nada?
      – Nada. Areia e pedras. E, à noite, há estrelas.
      Calava-se, então. Essa era uma das suas características mais pessoais: podia-se calar a meio de uma frase de um interlocutor e ficar assim, como se tivesse partido para outro planeta, sem aviso. Quem não a conhecia bem, ficava sem chão, sem saber o que fazer. Mas eu sabia, também aprendi com ela que saber partilhar o silêncio é a forma mais íntima de estar com alguém, nunca deixou de falar comigo. Quanto mais não seja nos poemas que deixou nas páginas dos seus livros, alguns dos quais escrevi nas paredes da minha casa para que ela saiba que continuo a escutá-la.

      Miguel Sousa Tavares | “Cebola crua com sal e broa”, págs. 85 e 86 | Clube do Autor, Maio 2018

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