Excertos de cartas enviadas aos 71 anos por Marcelo Caetano exilado no Brasil, a Maria Helena Prieto.
Ele: “De há uns tempos para cá me sinto às vezes leve como um passarinho. Não se pode dizer nada disto a ninguém porque todos achariam ridículo. E se calhar é mesmo.”
Ele: “Agora só ambicionava poder reformar-me para borboletear por um assunto ou outro ao sabor da oportunidade ou da fantasia. Ai de mim.”
Ele: “Estamos brincando com o fogo… com aquele fogo que arde sem se ver… estamos brincando com a água do oceano que nos separa”
Ele: “Penso em ti todos os dias e contigo converso dia e noite como um fala-só”
Ele: “Enquanto pudermos gozar o momento que passa
E vibrar porque chegou a carta ansiosamente esperada
E lê-la com voracidade e emoção
E relê-la uma e mais vezes
Com o entusiasmo de uma adolescência renascida”
Ela: “Lembrei-me que era mulher de carne e osso: em homenagem ao puritanismo, numa hora de brutal estupidez, assassinei o milagre”
Ela: “Estupidez assassina a minha! Nunca mais tornaria a receber as cartas maravilhosas que me escrevias com entusiasmo juvenil: com a graça, a naturalidade, o abandono da confiança!”
Ele: “É curioso como se inverteram situações. Lembro-me de, em tempos, me dizeres que temias um encontro, receosa de que eu tivesse uma decepção a teu respeito. Hoje quem teme a visão ‘face a face’ sou eu. Sou eu que nas tuas cartas me vejo sobrevalorizado e idealizado, e tenho medo que a realidade choque. Esta vida de reformado que levo, com pouca atividade social e o trabalho que eu próprio invento para encher o ócio, fez-me perder muito do desembaraço antigo e a autoconfiança.”
Ela: “É difícil conformar-me: mas que remédio? Amar-te já não gera tragédia”
Ele: “Ao recebê-la aqui no Rio, fi-lo com o maior prazer, mas procurando sempre evitar qualquer manifestação de ternura que desse lugar a algum equívoco ou pudesse alimentá-lo. Não me foi difícil porque, como disse, durante esta ano envelheci.”
No dia seguinte a esta última carta, ele morreu.
Há cerca de um mês vi uma entrevista ao Miguel Caetano, o 3º. dos quatro filhos de Marcelo Caetano e o que trata das questões relacionadas com este tipo de espólio do pai.
A certa altura ele falou um bocado sobre este lado que trouxeste aqui.
Talvez suscite mais curiosidade ou estranheza pelo facto de muitas vezes se duvidar que a doçura pode habitar num ditador e normalmente acontece; aliás, acontece com todos nós, cada um com a sua medida (nota: o filho diz que ele não era fascista, mas sim ditador).
É mais um exemplo que poderá servir para olharmos / avaliarmos os outros (e a nós) como feitos de muitas camadas; como se fôssemos vários (gosto de pensar que somos como matrioskas).
Sucede-me sempre que leio algum livro que transcreve correspondência pessoal, diários… Uma espécie de estranheza e divisão dentro de mim: por um lado ajuda a conhecer melhor a pessoa em questão e até a questionarmo-nos, e também ajuda a caracterizar uma época; mas por outro lado há a questão / dificuldade em mostar o privado-íntimo de alguém.
Voltei a sentir isto há pouco tempo, a propósito do livro “Duas mulheres”, da Maria Filomena Mónica. Na altura, escrevi isto:
“ando a ler este livro, que está muito bem escrito em todos os sentidos, como é hábito da maria filomena mónica.
o livro conta a história de uma das avós e da mãe da autora, e através do relato da vida destas duas mulheres, apresenta o retrato das épocas em que ambas viveram, os anos vinte do século passado e o salazarismo.
a elaboração do livro teve por base vários tipos de recordações, incluindo documentos pessoais das mulheres visadas, tais como diários, cartas e outros.
a leitura também serve para nos colocarmos em perspectiva, no sentido de equacionarmos e pensarmos na possibilidade de procedermos da mesma forma ou de outra diferente face a situação idêntica, e de avaliarmos como pensamos hoje que gostaríamos que tratassem do nosso espólio pessoal quando morrermos.
em suma, a questão é: mostrar/citar documentos pessoais e íntimos ou resguardá-los?
para mim, no dia de hoje, a opção é não mostrar (nem ler) essa documentação pessoal deixada, que é também o modo que hoje penso que gostaría que adoptassem com o que deixar.”
A questão aqui é agravada pelo facto que ela, publicou em livro essas cartas. E as cartas foram escritas para ela, mas não por ela. Discrição não é o forte dela.
Na altura ela era casada, e ela mostrou as cartas ao marido, que lhe disse “Sabes que estás a receber cartas de amor?”. Isto são uns anos 70 um pouco estranhos.
É certo que a publicação mostra uma outra dimensão do homem. E para alguns torna-o mais humano e encantador.
Mas se em vida ele sempre quis resguardar esse lado de si, se fosse eu respeitaria essa vontade mesmo depois de morto.