madrugada
escrevo te
Tanto para fazer e tão pouco tempo,
pouco a fazer em tempo nenhum
Disse Romualda Fernandes, deputada e negra, depois de ser eleita:
«A partir de agora nós, mulheres negras, cada vez que olharmos para a escadaria da Assembleia da República não nos iremos ver apenas com baldes e esfregonas para limpar: estamos lá dentro, temos voz e podemos sonhar.»
O que me grita nesta frase como regra imutável da vida é que as esfregonas por norma não têm voz nem podem sonhar.
Pouco me alegra que neste parlamento tenham estado três mulheres negras com voz e sonhos. Porque para a grande maioria, ao nascer mulher e negra terá como destino um balde e esfregona.
A alegria virá no dia em que voz e sonhos não sejam privilégio de poucos, e as esfregonas deste mundo sejam tudo o que podem ser.
Para dizer ‘Nunca digo nunca’ é preciso dizer nunca duas vezes
até a palava Nunca parece engraçada quando se olha bem para ela, Nun e Ca
ou talvez só esteja com sono e isto passe daqui a pouco
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
...
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
...
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
...
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.